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3X SANGRENTA

Foto do escritor: Editorial HopeEditorial Hope

Por: Bruna Camargo

Augusta encarava o relógio em cima da lousa branca como se milagrosamente sua agonia fosse capaz de girar os ponteiros mais rápidos, naquela aula de matemática.

Não eram os cálculos que a incomodava e fazia com que cutucasse o canto das unhas, eram os cochichos ao seu redor, tinha certeza de que eram sobre ela, já tinha vivenciado isso antes.

Estava completando dois meses que sua mãe Luíza, a transferiu para o Colégio particular Professora Maria Antonieta, após boatos na escola anterior. Augusta não gostava da turma antiga, foi lá que começou o problema, mas a nova escola não estava diferente. Ser ingressa no meio do ano letivo era como ser forasteira numa cidade hostil.  

Os alunos do Maria Antonieta eram de uma classe social mais elevada do que estava acostumada, o que para Augusta soava como filhos de papai empoderado e mesquinhos, tão diferente da garota de dezesseis anos que já não se importava mais para sua aparência e roupas, só em sobreviver até o final do dia, até poder finalmente desaparecer. Esse era seu real desejo. 

Duas alunas nas cadeiras da frente trocavam um bilhete por debaixo da mesa e riam, o que fez Augusta tremer, até porque só podia ser sobre ela. 

— Está vendo, menina, o que seu escândalo está nos causando? A dificuldade que está sendo pagar a mensalidade do novo colégio? Faça o favor de no mínimo ficar invisível por lá. — Ouvia a voz de sua mãe na cabeça e seu estômago revirou pela primeira vez, ela respirou fundo e voltou seu olhar para o trágico relógio. Luíza não era uma mãe ruim, o que havia acontecido era sua culpa, ela sabia e precisava sentir.

Seu dedo já sangrava, ainda assim não era o suficiente. Ela queria sentir até desaparecer, ela precisava sentir, porque era culpa dela. Pois a menina asiática que continuava trocando bilhete com a amiga, a encantava, mesmo depois de tudo o que aconteceu e Augusta não podia se encantar dessa maneira, ela precisava ser invisível, ela precisava desaparecer.

Chegou a se perguntar se os demais escutavam as batidas do seu coração que palpitava até sua garganta. Então finalmente o sinal tocou e a garota que tanto desejava não ser notada foi a última a deixar a sala, a encarar os corredores barulhentos de alunos livres para o intervalo. E só o pensamento de pegar a barra de cereal em sua mochila, foi o suficiente para que a boca começasse a salivar, o estômago se revirar novamente e dessa vez respirar não ia adiantar.

Augusta baixou a cabeça, tapou a boca e correu para o banheiro mais próximo, se trancou na sexta e última cabine a tempo de a bile subir pela garganta e ela despejar na privada o pouco do café da manhã que conseguiu tomar. Enquanto a ânsia não passava, ajoelhada e abraçada a cerâmica fria ela ouvia as vozes que a atormentavam em sua mente.

"Maria Sapatão!"

"Abominação!"

Elas diziam.

E se dependesse dela, ela vomitaria até seu coração finalmente sair pela boca, mas isso não aconteceria, ela sabia. Estar no chão, tentando recuperar sua respiração já era um hábito e infelizmente não era o suficiente para fazê-la sumir. Ela puxou a descarga recuperando o fôlego, passou as mãos pelos olhos para se desfazer das lágrimas, mas assim que tocou o fecho da cabine para abrir, ouviu a porta do banheiro ser escancarada e alguém rindo. Não podia ser encontrada assim, não podia vítima de mais boatos, precisava ser invisível.

— Yumi, você não vai realmente fazer isso, não é? — Questionou uma voz cheia de medo.

— Deixa de ser trouxa, Vivi, vai dar tudo certo! É só uma lenda! — era a menina asiática que se sentava a sua frente. Tinha certeza, ela havia reparado bem em sua voz na aula de literatura.

— Yumi, por favor! — Apelava a outra voz, provavelmente a que trocava cartinhas ao longo da aula.

— Vivi, você realmente acha que vamos invocar uma garota loira morta apenas assim? Vamos mostrar ao João que somos melhores que isso, desafio é desafio.

A menina que queria desaparecer ouviu uma das cabines serem abertas.

 — Juntas, Vivi! — incentivou a japonesa.

Então a primeira descarga.

"Por favor, não, mamãe sempre disse que não se mexe com esse tipo de coisa!"

Pensou Augusta calada em sua cabine.

A segunda descarga.

Augusta conhecia a lenda.

"Por favor, não!"

A Terceira descarga veio, e as meninas se voltaram para o espelho.

— Loira do banheiro! — disseram e uníssono — Loira do banheiro! Loira do banheiro! — Se Vivi pudesse fugir pelo ralo fugiria, mas sua amiga era teimosa demais e não a perdoaria.

As luzes piscaram e Augusta apertou os olhos.

— YUMI!!! — Ela ouviu tentarem abrir as portas do banheiro enquanto o cheiro de sangue impregnava ao redor e sons guturais eram emitidos.

Augusta pressionava o rosto para não emitir nenhum som, enquanto as meninas gritavam e ninguém entrou no banheiro para resgatá-las, é como se o mundo se resumisse nesse momento. Ela ouviu o silêncio e depois sons de gotas pingando. Não era seguro sair, todavia ela não podia se esconder a vida inteira. Poderia ser só uma piada, poderiam ter visto ela entrando aqui apressada, descobriram sua história e estão tirando sarro da sua cara, ela estava acostumada a isso. Os sons de gotejamento cessaram e ela finalmente destrancou a cabine e saiu. 

A primeira coisa que ela notou foram os corpos de Yumi e Vivi no chão, com seus pescoços rotacionados de maneira estranha e sangue saindo de suas bocas. Os olhos estavam abertos, mas elas não teriam como estar vivas daquele jeito. Os olhos não eram para se fecharem quando morremos? Acima delas estava a criatura que fez Augusta se escorar na parede atrás de si, desejando profundamente se fundir a ela e desparecer.

— Por favor — chorou enquanto a mulher loira se voltava em sua direção — Eu não participei disso! — Ela tinha algodões sujos de sangue tapando seu nariz, o líquido vermelho também escorria por sua boca, seus cabelos eram dourados, bagunçados de quem há tempo não via um pente, trajava um vestido que um dia foi branco e se movia na direção da menina fazendo sons de ossos sendo quebrados como se ela pisasse sobre eles — Eu não te invoquei, por favor! 

Augusta escorregou até o chão aos prantos. Ela era inocente nisso, estava apenas no lugar errado, na hora errada. Mas a loira do banheiro a alcançou com uma velocidade sobrenatural, ficou de joelhos na sua altura e a olhou nos olhos de forma selvagem. Foi meio segundo o contato entre as duas garotas de cabelos amarelos, mas foi tempo suficiente para Augusta enxergar a verdadeira face do medo, da acusação e da dor.

Sentimentos que ambas compartilhavam. Tão distintas e tão semelhantes. Esse conflito de emoções foi transformado em puro ódio.

O sinal tocou tirando as duas do transe e fazendo Augusta piscar os olhos. 

Quando ela os abriu não estava mais sendo encarada, seu corpo estava mais leve, de uma forma estranha, ainda trajava o uniforme branco com listras na manga da escola, só que algo estava diferente. Os corpos permaneciam no chão do banheiro. Ela andou até o espelho a frente deles e o reflexo que a encarava tinha algodões sujos de sangue tapando o nariz, os cabelos revoltos e instintivamente ela bateu lentamente três vezes na porta de madeira da primeira cabine do banheiro e começou a desaparecer.

 




Bruna Camargo


Nascida em 1994, carioca, casada. Apaixonada por livros, animais e músicas. Encontrou nas letras sua fuga da realidade .

Autora do livro A filha da Noite, publicado pela Hope em 2022.



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