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AMÉLIA

POR: LARISSA ROCHA

Amélia era mãe dedicada. Sempre cuidadosa, nunca perdia o filho de vista. E isso já era motivo de premiações. Aquela criança curiosa de apenas cinco anos era um verdadeiro pirralho. Não parava quieto. Serelepe, agitado e curioso. As íris da mãe eram como uma bola de pingue-pongue seguindo-o de um lado para o outro. Mas ela já estava acostumada.

Também já estava acostumada com Belo Horizonte. Ah, a capital mineira! Um sopro de aconchego, um abraço apertado em sua alma. Era isso que aquela cidade representava. Amélia tinha passado uma parte da infância ali por causa de sua querida tia Dalva. E quando seu marido lhe disse para escolher o destino das próximas férias, ela não hesitou. Sabia que tinha que ver sua tia.

Há dias ela sonhava com Dalva de Lima, uma senhorinha com quase a idade de sua mãe. Bem, ela era a irmã da mãe de Amélia. Mas ao contrário de sua mãe, tão impetuosa, Amélia parecia mais como sua tia. Por isso era uma mãe zelosa e prestativa e que nunca perdia o filho de vista.

Pensou que os sonhos eram só a saudade se diluindo em imagens, transportando seu sentimento, que já estava maior que o peito, para um cantinho dentro de sua mente. Ah, ela era muito apegada à tia Dalvinha. Afinal foi ela que lhe ensinou tudo sobre amar e cuidar dos outros. Dalva tinha lhe ensinado a sempre praticar a hospitalidade. A sempre demonstrar educação, não dispensando o uso do: por favor, obrigada, com licença, me desculpa…

Às vezes, até quando não precisava, Amélia fazia uso desses bons modos. Buscava passar isso ao filho, mas ele… Ele era só uma criança e nem sempre era tão obediente.

Ah, tia Dalvinha! Ela era mesmo uma fonte de inspiração. E era bom sonhar com ela.

Para Amélia, os sonhos sempre pareciam um jeito poético de ver o mundo. Tudo bem, ela sabia que nem tudo era poesia. E que havia sonhos que eram mesmo só memórias do dia-a-dia. Memórias do filho serelepe gastando sua energia ao tentar subir em árvores, correndo pelo parquinho, falando de desenhos animados… Memórias do marido reclamando do acúmulo do serviço no trabalho, levando o filho para assistir jogo de futebol, comprando-lhe algumas de suas plantas favoritas… Ah, os sonhos-memória.

Sabia que alguns eram medos disfarçados. Sentimentos engavetados. Emoções imaturas e cruéis. Pesadelos. Era raro, mas ela os tinha, como todos os seres humanos. Amélia não tinha medo de morrer. Só tinha medo de ser esquecida. Sentia que precisava fazer algo para que as pessoas pudessem fazer dela alguém memorável… Ah, Amélia!

Doce Amélia!

Sua maior alegria era saber que os sonhos também eram uma forma de ouvir a voz de Deus. E nisso consistia a mais bela poesia de todas. Como o Criador se daria o trabalho de configurar sequências de imagens para lhe transmitir alguma mensagem? Amélia sempre amou ouvir sobre sonhos por causa disso. E esse era o único momento em que não tinha medo de ser esquecida, porque Ele se lembrava dela.

E soube de imediato que aqueles sonhos repetidos com Dalva, eram mesmo classificados como especiais. Não. Extraordinários. Eram como um aviso. E assim que ela chegou em Belo Horizonte, soube que era uma forma muito cuidadosa de Deus lhe dizer: Dalva precisa de você.

Amélia sempre sentiu que todos precisavam dela. Primeiro por ser a filha mais velha de três. Depois por ter sido a sobrinha querida de Dalva, que demorou a ter filhos. Em seguida foi o marido, que precisava de seu apoio incondicional e do bem estar que proporcionava nos afazeres domésticos. Logo em seguida foi seu filho, que não parava quieto, uma criança que só sabia se pendurar nas coisas como um macaquinho brincalhão.

E agora mais uma vez era hora de atenção para sua velha tia. Foram dias e dias no hospital cuidando de Dalvinha que estava sofrendo de uma perda de memória acentuada. Alzheimer.

Dalva não se lembrava de Amélia. E isso doía. Doía porque Amélia nunca foi de receber grandes parabenizações das irmãs, da mãe, do marido, e o filho… Ele ainda era só uma criança. Mas Dalvinha… Dalvinha sempre foi a maior torcida. Sempre se importou em elogiá-la e dedicar-se a ela como podia. E agora nem isso lhe restava.

E a mãe dedicada que não tirava os olhos dos filhos, do marido, dos outros, teve que olhar para si depois de um longo período de dedicação exterior. E encontrou mirando o reflexo de sua alma, um vazio do tamanho… Do tamanho de si.

Foi nessa piscada para dentro de sua alma, encontrando o emaranhado de nós que seu peito formava que o filho saiu correndo pelo parquinho daquela cidade, para ele, ainda muito desconhecida. Amélia não o viu;

Pela primeira vez se esqueceu do filho. Estava como Dalvinha, desmemoriada das funções básicas de ser alguém. De ser ela mesma. De Ser Amélia.

— Senhora, por acaso essa criança é sua? — perguntou um homem de boa aparência e olhos claros. Amélia não fazia a menor ideia de quem era aquele senhor. — Faz bons minutos que o garoto grudou no carrinho de bebê da minha filha.

Amélia levantou os olhos, viu que o homem estava segurando uma bebezinha de colo, que deveria ter o quê? Sete meses? Uma linda menininha de sete meses de vida. Bochechas coradas, olhinhos claros, sorriso fácil… Uma princesinha.

— Eu sei que ele ainda é uma criança, está na fase de aprender. Mas sugiro que a senhora seja mais firme com seu filho, no momento que eu me descuidei, ele quase saiu empurrando o carrinho com a minha filha dentro. Olha, a gente aprende bons modos desde cedo…

Amélia não ouviu mais nada. Por um segundo seu cérebro deu uma pane. Falha no sistema. Travou.

Limbo.

Bem devagar as engrenagem voltaram a se movimentar e aos pouquinhos… Um estalo.

Seu ato falho, seu filho agitado, aquela linda bebêzinha em sua frente, Dalvinha… Muitos sentidos.

Sentidos e sentidos.

Embora pensasse que Dalvinha era a “criança” que precisava reaprender e recuperar a memória. Era Amélia a sem memória de si. Era ela que sofria esquecimentos de sua personalidade, de suas vontades… De seus sonhos.

Talvez tudo se encaixasse bem ali naquele exato momento em que um homem irritado reclamava do seu filho sobre a falta de bons modos. E se fosse exatamente essa a forma de Deus lembrar-se dela outra vez.

Não de Dalva.

Mas dela.

Amélia.

Alguém.

E sobre os bons modos, ela sabia que aquele homem estava falando sobre o jeito curioso do filho. Mas ela não podia deixar de pensar em como seus modos mudariam de bons… Para melhor!

“Com licença, mas o filho é nosso. Você precisa também me ajudar a criá-lo”.

“Sim, por favor. Eu adoraria passar mais horas desfrutando um tempo comigo mesma e me conhecendo”.

Muito obrigada, mas devo cuidar de cultivar boas memórias de mim para caso se vier a me esquecer, ao relembrar de minha vida, não queira esquecer-me de novo”.

Ela tinha entendido, finalmente, que dedicar-se a quem amava não implicava em esquecer de seus sentimentos. Como poderia amar e cuidar dos outros de forma saudável se não conseguisse cuidar de si mesma? Como poderia apreciar tantos os sonhos, se tinha esquecido de sonhá-los?


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