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ROMANCE MODERNO

Por Lucas Matheus

Eu vivo de histórias que quase sempre não me pertencem. Eu vivo das histórias dos outros que vivem suas narrativas ao meu redor, eu me aproprio desses plots cheios de reviravoltas sem a permissão de seus donos e os transformo em literatura. Eu vivo de histórias que tangenciam a minha própria, mas que nunca causam uma interseção duradoura. As narrativas são dos outros, mas a transfiguração da realidade para o mundo das letras é minha, e pertence somente a mim.

E por mais que essa introdução pareça inapropriada, ela é parte integrante da minha observação sobre a construção do romance moderno, pois minha constatação naquela noite triste começou com ela e eu fazia reflexões comigo mesmo sobre os ambientes que eu fazia parte e os que não fazia, mas essa história não é sobre mim, é sobre um garoto chamado Cristiano, que chamou minha atenção quando seu amigo gritou seu nome com certa animação irritante, comum nos jovens que ainda não descobriram a dureza da vida.

Ele era um garoto tímido que não dizia muitas palavras, mas que parecia possuir muita vontade de dar sua opinião sobre tudo, cabisbaixo e com um ar de tristeza não aparente em sua expressão. Não sei porque aquela imagem se mostrou como um espelho para mim e de repente eu estava vendo a mim mesmo, em uma época obscura em que eu tinha vergonha de mim mesmo, que não tinha coragem de assumir minha própria identidade, aquilo que eu sentia dentro de mim. Senti pena do garoto e passei a observá-lo pelo resto da viagem, estávamos em um ônibus voltando de lugares diferentes e indo para caminhos diferentes.

Cristiano conversava com o amigo e não era de muitas palavras, eu sabia o motivo, ou pelo menos achava que sabia, e os dois falavam sobre algum evento que haviam ido, talvez naquele mesmo dia, e Cristiano apenas balançava a cabeça enquanto ouvia seu companheiro de viagem se gabar de como havia trocado beijos com várias meninas diferentes; seu desejo era outro e era claro que a presença do amigo não era tão bem-vinda assim.

O ônibus parou em um dos ponto da Bezerra de Menezes, avenida que abrigava grandes lojas e apartamentos grandiosos, além do nostálgico North Shopping, foi justo em frente ao shopping que o veículo parou e nesse ponto era sempre demorado, pois muitas pessoas voltavam de seus trabalhos e de seus passeios e de seus negócios.

Foi quando em uma rápida e astuta jogatina do destino, Cristiano fixou seus olhos em um rapaz muito bonito que se encontrava na parada com alguns amigos que pareciam ser do mesmo naipe de seu próprio, e aquele minúsculo momento causou uma enorme comoção naqueles dois, pois se encararam tipicamente como dois corpos que se apaixonam um pelo outro. O garoto não pegaria aquele ônibus e Cristiano aproveitou cada milésimo daqueles segundos que pareciam intermináveis, mas terminaram com uma fechada de porta e uma arrancada que fez todos balançarem dentro do veículo.

Cristiano e o rapaz ficaram mergulhados um no outro até não conseguirem mais. O ônibus seguiu caminho e o menino que queria muito ter alguma voz, mas não tinha coragem ainda para ter uma, teve sua atenção mais uma vez fisgada pelo amigo inconveniente que outra vez começou a se gabar das meninas que havia arrancado alguns beijos. Perguntei-me o que aconteceria depois dali e projetei meu próprio desejo para o fim daquela narrativa da vida real: Cristiano procuraria o rapaz nas redes sociais e dentro das improbabilidades seria agraciado pelo destino e encontraria seu novo possível amor, os dois começariam a conversar, assim como quem não quer nada, despretensiosos mas cheios de pretensão, um primeiro encontro, alguns beijos trocados, um possível romance formado. Pensar naquilo de alguma forma acalmou meu coração atribulado, mas senti uma pontada no estômago ao constatar a ausência dos tempos que não voltam mais.

 

Lucas Matheus nasceu em 1995, em Fortaleza, no Ceará, onde reside nos dias atuais. É apaixonado pelo universo do terror e do horror desde muito jovem e escreve histórias tenebrosas desde que conheceu os caminhos da escrita. Foi vencedor do VII Prêmio de Contos do Sesc Crato, trabalhou como revisor e editor literário no passado e hoje é professor de língua portuguesa e literatura na rede básica de ensino. Seus contos marcam presença em várias antologias e é autor da duologia No Domínio.

Saiba mais sobre o autor clicando abaixo.


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